quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Os ‘génios’ e os outros

Baptista-Bastos

As afrontosas injustiças sociais conduzem as pessoas a um cada vez maior afastamento do acto cívico e ao desprezo repugnante pelos políticos. As estatísticas são reveladoras. Nunca será de mais referir as evidências. Está em marcha uma espécie de "mexicanização" do regime, em que apenas o PS e o PSD estão dotados da autoridade do poder. A tentativa de se amordaçar a voz dos pequenos partidos destrói a tese segundo a qual, em democracia, as singularidades devem ser afirmadas, reivindicadas e, inclusive, estimuladas. Aos homens da minha geração e àqueles que se nos seguiram causa calafrios a doutrina de que os "outros" não dispõem de bons argumentos.

Temos, talvez, "excesso de memória", como disse a investigadora Irene Pimentel: possuímos o lastro de uma História cuja linguagem se choca com esta realidade, que serve de ligação a versões turvas da liberdade, da equanimidade e da justiça.

As perversões bradam aos céus. Vão-se conhecendo as "reformas obscenas" [expressão de Bagão Félix] atribuídas a "gestores" de instituições públicas; os salários indecorosos; os privilégios e os prémios; as mordomias e as sinecuras. A soma das iniquidades causa ressentimento num país com dois milhões de pobres, elevadas taxas de desemprego, velhos a morrer nos jardins, jovens perplexos com o futuro.

A revista Visão publicou [10 de Janeiro, p.p.] um documento impressionante, no qual são reveladas as diferenças das folhas de ordenado em 25 grandes empresas. Os números são revoltantes. Henrique Granadeiro, administrador-mor da Portugal Telecom, aufere, mensalmente, 185 590 euros [cerca de 37 500 contos], ou seja: 128 vezes mais do que a empresa gasta com 128 trabalhadores, na base de que cada um destes recebe 1449 euros [cerca de 300 contos] mensais. O rol de disparidades não se limita a este caso. E um tal Rui Luz, "perito" em recursos humanos, sustenta a indecência com a frase: "A escassez de talento justifica os salários de directores de primeira linha." Na interpretação deste cavalheiro, estamos perante Einsteins, Oppenheimers, seres incomuns, com elevados graus de genialidade. Não é assim. Conheço alguns dos indicados, cujas meninges deixam apreensivos todos aqueles que não escrevem samarra com cê de cedilha e polícia com U.

Mas este é o discurso do poder e os seus ecos mais condenáveis. Perdeu-se o sentido das proporções, e a ética foi torpedeada por uma democracia administrativa que protege e premeia quem a defende e vitupera e persegue quem a critica. Não há grande variação das formas da palavra. Entre os que decidem, os que se submetem e os que reivindicam existe o domínio de classe que tende a confundir a generalidade e o interesse geral.

Quem nos acode?

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